Bruxos
Bruxos
Respiração ruidosa e leve, sorriso nos olhos. -Esperem,
tenho que calçar uns sapatos.
- O Vó, não te vamos tirar a fotografia aos pés.
A pose, as gargalhadas, o pormenor, a cadeira, o sol a
entrar pela janela, o momento e os chinelos retratados sem querer.
Os chinelos/bruxos preferência de sempre. Bocados
de trapo vindos das sobras da industria de lanifícios lá para a Serra, feitos
utilidade. Abafavam o som de passos no soalho, puxadores de lustro quando da
cera nova a invadir a casa de limpeza. Pendurados aos pares em tiras nas portas das atravancadas
lojas do mercado.
A Senhora Matilde, alta, seca, pernas palitos, saia de riscado.
- Ai senhora D. Mimi, estava lá tanto povo, tanto povo…
E ás escondidas lá tirava uma grande laranja do bolso para a
Maria Fernanda que estava a amamentar a bebé. Havia dias e semanas de escassez
la em casa. O pai (ainda não era Avô Santos) saía para consertar máquinas de
escrever e só enviava o desejado vale postal quando recebia o primeiro
pagamento. Tempos difíceis então lá por casa, era até acabar o último resto de pão
e a vergonha social ditar não se pedir mais fiado. A senhora Matilde e a Maria
Rosa leais para com as suas meninas, Mimi e Gina, esperavam para receber e iam
ajudando em pequenas coisas. Matilde na sua pobreza foi generosa para com Maria
Fernanda e a bebé.
As vendedeiras de tremoços, pevides e colares de pinhões com
a pele. Ás vezes víamos o Vilaça. Vinha no Anglia verde carregado de
galhardetes e bandeirinhas no vidro traseiro. Alto, feio, bem-posto, encantador
no ar de homem do Norte, charmoso jogador. Oferecia-me um colar de pinhões.
A casa grande na rua Direita, o jardim com os mais belos
cravos de Leiria. Cravos ceifados para fazer coroas de flores para a bebé da
minha idade que morreu engasgada. Pediram esses belos cravos e em lágrimas
foram oferecidos. Afinal lá em casa estava a primeira neta, bebé saudável e
aquela não tinha sobrevivido. Mimi equilibrava os mundos em casa, a difícil casta de dentro e a que surgia agora desafiando a frágil teia familiar.
Quando chegava das suas raras saídas á rua Mimi tirava o chapéu, o vestido de seda, os saltos.
Mantinha o batom e o pó de arroz, vestia um vestido de algodão e usava os bruxos.
Não se lhe ouviam os passos mas ela estava sempre presente.
Era Leiria, era o inicio.
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